terça-feira, 6 de agosto de 2013

Enluarada


Entrelaçados, metal e madeira prendiam a noite lá fora. Era sempre assim quando o luar chegava. Primeiro o pai. Depois, o marido que a família lhe dera. “Sê grata, filha minha, noites enluaradas são perigosas.”

E ela agradecia. E sorria.

“Um anjo” diziam.

“As feras espreitam, espreitam, bem vindos são os trancos”, sussurrou um dia, a avó, quando lhe ensinava a arte de manter os trincos cerrados. Mas parecia triste. E aquela tristeza pingava devagar no seu coração.

Então, eram noites de passos lentos e vagos na solidão das paredes vazias. Saberiam do cheiro que o luar derramava quando invadia as frestas perdidas da casa? Conheceriam o convite orvalhado das noites em que a luz procurava por ela? E meio sem pensar desejava o ar lá fora, mas então, o velho medo a invadia, e afastava depressa o zumbido desses pensamentos insanos e tecia, bordava, cozinhava, sorria e obedecia.

Então diziam, “é um anjo”.

E logo, ela mesma cerrava suas portas, satisfeita por ser uma criatura angelical.
Mas a voz triste da avó ainda pingava dentro dela.

Até que… era noite calma, quando o uivo de uma fera rasgou o silêncio. Lobos!

Levantou-se curiosa, mas os homens estremeceram e as mulheres fingiram não notar. Então, também ficou calada.

Mas noite após noite, os uivos chegavam e eram dois, três, quatro…  tantos lamentos rompendo a madrugada. As vozes em casa subiam, inventavam músicas e festas… e dentro dela, a lembrança da voz triste da avó ainda pingava mistérios de uma sonata lupina.

E das feras que viviam lá fora, percebeu que uma não teve medo das trancas e vivia agora dentro dela. Soube, então. As horas passaram rápido demais enquanto sonhava estrelas lejanas; havia regado como se fossem flores, pedras de rara beleza, pero não nascidas para crescer.

Hora era de ir embora. Acenou com doçura para aves sem pousada… ela sabia que não mais haveria luz, não haveria frutos, nem flores, nem nada.

“Um anjo”, diziam.

E talvez, estivessem certos.

Partiu ao entardecer. Antes que os homens e as trancas voltassem do campo, fez a mesa, a cama, a casa. Haveria comida fumegante no fogão, a luz acesa escapando das janelas cerradas e todos ficariam contentes quando se aproximassem.

Quando ela partiu, as cores do crepúsculo queimavam a tarde e apesar da melancolia, havia vida. Com preguiça, estendeu os tentáculos dos últimos sonhos e se foi.  Era hora de olhar para si. E nem percebeu, quando, por estranhos caminhos, a lua sorria e surgiam, como pétalas rubras, suas próprias asas.

Nas noites de lua, a fada dos lobos uivava.

E com os lobos, corria pela madrugada. Era mesmo um anjo, a mulher enluarada.

Na vila, os homens suspiraram e reforçaram as trancas. As mulheres teciam e falavam, bem baixinho, da mulher enluarada, fingindo não saber que além da madeira e do metal, a vida seguia lá fora. É assim, a sina lupina.

Quem tem alma de peeira não resiste ao beijo ternurento do luar.

 Texto: Tânia Souza


Lambido de Quotidianos

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