Entrelaçados, metal e madeira
prendiam a noite lá fora. Era sempre assim quando o luar chegava. Primeiro o
pai. Depois, o marido que a família lhe dera. “Sê grata, filha minha, noites
enluaradas são perigosas.”
E ela agradecia. E sorria.
“Um anjo” diziam.
“As feras espreitam, espreitam,
bem vindos são os trancos”, sussurrou um dia, a avó, quando lhe ensinava a arte
de manter os trincos cerrados. Mas parecia triste. E aquela tristeza pingava
devagar no seu coração.
Então, eram noites de passos
lentos e vagos na solidão das paredes vazias. Saberiam do cheiro que o luar
derramava quando invadia as frestas perdidas da casa? Conheceriam o
convite orvalhado das noites em que a luz procurava por ela? E meio sem
pensar desejava o ar lá fora, mas então, o velho medo a invadia, e afastava
depressa o zumbido desses pensamentos insanos e tecia, bordava, cozinhava,
sorria e obedecia.
Então diziam, “é um anjo”.
E logo, ela mesma cerrava suas
portas, satisfeita por ser uma criatura angelical.
Mas a voz triste da avó ainda
pingava dentro dela.
Até que… era noite calma,
quando o uivo de uma fera rasgou o silêncio. Lobos!
Levantou-se curiosa, mas os
homens estremeceram e as mulheres fingiram não notar. Então, também ficou
calada.
Mas noite após noite, os uivos
chegavam e eram dois, três, quatro… tantos lamentos rompendo a madrugada.
As vozes em casa subiam, inventavam músicas e festas… e dentro dela, a
lembrança da voz triste da avó ainda pingava mistérios de uma sonata lupina.
E das feras que viviam lá fora,
percebeu que uma não teve medo das trancas e vivia agora dentro dela. Soube,
então. As horas passaram rápido demais enquanto sonhava estrelas lejanas; havia
regado como se fossem flores, pedras de rara beleza, pero não nascidas para
crescer.
Hora era de ir embora. Acenou
com doçura para aves sem pousada… ela sabia que não mais haveria luz, não
haveria frutos, nem flores, nem nada.
“Um anjo”, diziam.
E talvez, estivessem certos.
Partiu ao entardecer. Antes que
os homens e as trancas voltassem do campo, fez a mesa, a cama, a casa. Haveria
comida fumegante no fogão, a luz acesa escapando das janelas cerradas e todos
ficariam contentes quando se aproximassem.
Quando ela partiu, as cores do
crepúsculo queimavam a tarde e apesar da melancolia, havia vida. Com preguiça,
estendeu os tentáculos dos últimos sonhos e se foi. Era hora de olhar
para si. E nem percebeu, quando, por estranhos caminhos, a lua sorria e
surgiam, como pétalas rubras, suas próprias asas.
Nas noites de lua, a fada dos
lobos uivava.
E com os lobos, corria pela
madrugada. Era mesmo um anjo, a mulher enluarada.
Na vila, os homens suspiraram e
reforçaram as trancas. As mulheres teciam e falavam, bem baixinho, da mulher
enluarada, fingindo não saber que além da madeira e do metal, a vida seguia lá
fora. É assim, a sina lupina.
Quem tem alma de peeira não
resiste ao beijo ternurento do luar.
Texto: Tânia Souza
Arte: Lucas Zavagli
Lambido de Quotidianos
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