O
lobisomem, que no maravilhoso da imaginação popular é o homem extremamente
pálido, magro e de feia catadura, é produto, ou de um incesto, ou nasceu depois
de uma série de sete filhos.
Ente infeliz, condenado pela sua desventura a divagações noturnas, até
quebrar-se o seu encantamento, cumpre o seu fadário em certos dias, saindo de
noite, e ao encontrar um lugar onde um cavalo ou um jumento se espojou,
espoja-se também, toma a sua forma, e começa a divagar em vertiginosa carreira.
Nesse seu tristíssimo fadário, que começa à meia-noite e se prolonga até quase
ao amanhecer do dia, ao ouvir o cantar do galo, percorre o lobisomem sete
cidades e chegando, de volta já ao lugar do seu encantamento, espoja-se de
novo, retorna a sua forma humana e recolhe-se à casa, abatido e extenuado de
forças, entregando-se a um sono reparador, que por isso é prolongadíssimo.
A passagem do lobisomem é pressentida desde longe pelo ladrar de cães, que em
matilha o acompanham em perseguição, dando tempo, quase sempre, a cada um fechar
a sua porta pelo horror que ele infunde aos tímidos. Mas, se houver alguém de
coragem, que se enfrente com o lobisomem, e lhe faça um ferimento qualquer que
produza derramamento de sangue, por pouco mesmo que seja, tira-lhe o
encantamento e tomando ele imediatamente a sua forma humana, acaba por uma vez
o seu triste fadário.
O lobisomem aparece freqüentemente nos nossos contos populares como um monstro
horrível, que infunde terror às crianças, conseguindo-se com as suas narrativas
aquietá-las em suas travessuras. Dum desses contos que vogam entre nós e tem
por título - O lobisomem e a menina - consigna Sílvio Romero estas
estrofes, por não se lembrar mais do seu todo, e nem lhe ser possível mesmo
conseguir da tradição popular uma lição completa:
- Menina, você onde vai?
"Eu vou à fonte.
- Que vai fazer?
"Vou levar de comer
À minha mamãezinha.
- O que leva nas costas?
"É meu irmãozinho.
- O que levas na boca?
"É cachimbo de cachimbar.
. . . . . . . . . . . .
"Ai! meu Deus do céu
O bicho me quer comer!
O galo não quer cantar
O dia não quer amanhecer
Ai, meu Deus do céu!
Quase que deste mesmo gênero, figura ainda no ânimo popular um outro mito,
igualmente sob a forma de um monstro quadrúpede - a mula, geralmente,
metamorfose da barregã do padre, e que, como o lobisomem, cumpre também o seu
fadário em certas noites, sentindo-se mesmo a sua passagem pelo tropel
vertiginoso da carreira com que caminha, e o lúgubre tilintar das cadeias que
arrasta, apavorando imensamente a quantos pressentem tudo isso.
Do fatigante percurso dessas suas periódicas peregrinações, deixa ver a mula,
no outro dia, já tornada ao seu natural estado, veementes sinais no seu corpo,
produzido pelas cadeias que arrastara, e a languidez do cansaço pela sua
vertiginosa carreira a vencer e regressar de longínquas paragens nesse seu
tristíssimo fadário, que é como que se penitenciando do seu pecaminoso viver; e
o padre, para purificar-se dos seus pecados, amaldiçoa a barregã no ato da
celebração da missa, antes de tocar na hóstia para a consagrar!
Tratando o padre Lopes Gama das superstições e crendices populares do seu
tempo, diz o seguinte, sobre o assunto:
"Entre nós, hoje mesmo, (1842) qual é a velha, qual é o pai senhor, que
não crê na existência de lobisomem? E como a respeito do maravilhoso quase toda
a gente gosta de mentir, não falta quem jure ter visto os tais lobisomens. Um
afirma que fulano de tal virava-se em burro, e assim corria seu fado; outro,
que conhecera certa amásia de um vigário, a qual tinha a boca sempre esverdeada,
porque mudava-se em mula e andava pastando; outro diz que conhecera um homem
que era lobisomem, e transfigurava-se em porco. Certa mulher contou-me com toda
a seriedade, que já vira uma sujeita, que em certos dias não se arredava da
cama, sem ter moléstia alguma e toda coberta, porque estava virada em burra, e
não queria que lhe vissem os cascos, as orelhas, etc. Dizem além disto, que
toda a pessoa que se muda em lobisomem, vive amarela e espantada."
E o populacho ingênuo repete tudo isso com inabalável convicção.
(COSTA, Pereira da. Folclore
pernambucano; subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco.
Recife, Arquivo Público Estadual, 1974)
Lambido de Jangada Brasil
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