sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O Lobo e a Lua

O lobo nunca olhava para a lua, não precisava.

Sentia um comichão leve no focinho quando a lua estava cheia, e sabia que era hora de uivar aos espíritos do vento e da caça.

Por isso nunca precisava de observar o céu...

E quando erguia a cabeça para iniciar a sua oração canina, encerrava sempre os olhos, porque só assim conseguia gritar até ao mais alto agudo, sentindo a vibração da sua voz em cada pêlo do seu corpo.

Mas um dia, num momento de desconcentração, o lobo ergueu a cabeça de olhos bem abertos e a luz lunar derramou-se na sua visão, como uma cascata de prata líquida.

Durante minutos observou aquela visão desconhecida, num misto de espanto e adoração.

Nunca antes, nas suas noites de oração, se tinha apercebido da beleza da noite banhada de luar...

E ali ficou até o nascer do sol, extasiado com a forma, brilho e graça da lua, enquanto ao longe ouvia os outros lobos completarem o seu ritual, uivando alto na esperança de que os espíritos lhes abençoassem a caçada.

Com o passar do tempo a lua completou outro ciclo: encolheu-se até à lua nova, e alimentou-se de luz fresca para se tornar de novo cheia.

Mais uma vez, os lobos uniram-se em uivos distantes, latindo em uníssono a oração dos seus instintos.

Mas mais uma vez faltou o uivo agudo do lobo, e o vento soprou furioso, agitando as folhagens que em sussurros perversos espalharam pela floresta a notícia do lobo que deixara de uivar...

No ciclo seguinte, as noites tornaram-se mais frias e agitadas, sempre marcadas pela presença enlouquecida do vento.

Os seus sopros violentos atiravam passarinhos para fora dos ninhos, arrastavam coelhos e veados pelo chão, vergavam árvores anciãs...

Pouco a pouco, os animais foram fugindo da floresta, longe daquela flora desfigurada que já não constituía um abrigo...

E os lobos rosnavam baixinho enquanto dormiam, sonhando com as presas refugiadas no território de outras alcateias.

Uma noite antes da lua cheia seguinte, o vento soprou mais forte e determinado, arrancando do chão as raízes pesadas dos sobreiros que sinalizavam o refúgio dos lobos.

Os seus silvos assemelhavam-se ao uivar louco de um lobo velho, rebentando o peito no seu latido, como que a convocar a alcateia.

E assim, pouco a pouco, os lobos foram saindo do seu refúgio, uivando tristemente para uma lua precoce, quase cheia...

E no meio do seu choro cantaram o nome do lobo, aquele que deixara de adorar o vento e a caça, que se calara e condenara toda a floresta ao abandono.

Pela primeira vez naquele ciclo, o lobo distraiu-se na contemplação lunar, e ouviu próximos os lamentos da sua raça.

E nesse instante relembrou o seu instinto, voltou a sentir aquele comichão no focinho, aquela urgência de soltar na noite o seu grito agudo.

E uivou mais alto e mais claro do que nunca, deixando o seu latido cortar o céu, e atravessar a floresta e as montanhas até chegar aos ouvidos dos animais emigrados...

O vento por fim abrandou, e os latidos dos lobos apagaram-se com ele...

E o lobo ganiu baixinho, num lamento de tristeza e culpa pelo destino dos seus irmãos.

Caminhou lentamente pela floresta, magro e cansado, e olhou uma última vez a lua, pela qual se apaixonou assim que a viu, ao ignorar o seu instinto.

Ali caiu e ali morreu...

Na noite seguinte o vento soprou baixinho, acompanhando o uivar fúnebre da alcateia...

(Susana Castilho)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.